Quando a noite não acaba: 4 conselhos para a vida cotidiana de quem já passou pela guerra - PARTE 2
Josemaria Escrivá e Shackleton: quando a ordem da alma é a última defesa contra o abismo.
Estes conselhos nasceram da guerra. De porões cercados pela morte. De embarcações presas no gelo. De momentos em que não havia alívio imediato — nem solução visível.
São lembretes práticos para os dias em que tudo parece ruir. Quando não se pode escapar da dor… mas ainda se pode atravessá-la.
Na primeira parte, apresentei dois conselhos que mantêm o espírito erguido quando a realidade parece insuportável:
Cavalos não pisam em corpos. Lembre-se da dignidade.
A beleza não elimina o sofrimento — mas impede que ele seja tudo o que existe.
Eles foram o que sustentou homens e mulheres em situações extremas, quando o mundo desabava ao redor.
Foram colhidos ao longo de mais de cinco anos de pesquisa sobre sofrimento em tempos de guerra — e na escuta clínica de pessoas reais, enfrentando suas dores cotidianas.

Não solte a linha - Mantenha a rotina, principalmente quando não fizer sentido.
O ano era 1937. A Espanha pegava fogo. O sangue dos padres e religiosos lavava as ruas. Centenas eram executados à luz do dia. Igrejas eram bombardeadas e incendiadas. Naquele tempo, São Josemaria Escrivá era apenas um jovem padre. Jurado de morte, fugiu do sanatório em que estava disfarçado como louco para se refugiar por longos seis meses no porão do consulado de Honduras. Ele e mais cinco companheiros dividiam um espaço minúsculo, escuro, sem janelas. A fome era tanta que, ao reencontrá-lo, sua mãe mal o reconheceu — tamanha era a magreza.
A milhares de quilômetros dali, o explorador Ernest Shackleton enfrentava um tipo diferente de inferno. Não havia fogo nem sangue: mas uma imensidão branca. Seu navio ficou preso no gelo antártico, e ele passou mais de um ano cercado pelo rígido inverno com sua tripulação. O frio era insuportável, a comida escassa, a morte uma vizinha constante. As esperanças, que já eram poucas, desapareceram ao verem o Endurance naufragar. Agora, não estavam apenas presos no gelo — não sabiam nem se voltariam para casa. O relógio corria contra eles. Os 28 homens estavam entregues à selvageria da natureza.
São Josemaria e Ernest Shackleton nunca se conheceram. Duas vidas distintas: um padre santo, celibatário; um aventureiro indomável, conhecido por suas escapadas extraconjugais. Entre o fogo e o gelo, tinham algo em comum: os relatos retirados dos diários de seus liderados.
É de se esperar que, em meio a meses de extrema tensão, morte iminente, escassez de alimentos e incertezas, o clima fosse pesado. Triste, rancoroso. Mas encontramos justamente o contrário:
Um dos rapazes refugiados com São Josemaria escreveu:
"Isto não pode continuar, está bom demais." Outro, Eduardo, testemunhou: "Tomara, pensávamos às vezes, que aquilo durasse para sempre! Porque, será que nós tínhamos conhecido algo melhor do que a luz e o calor daquele recanto?"
Talvez você pense que foi uma espécie de delírio espiritual — especialmente porque o jovem padre viria a ser canonizado anos depois. Mas é possível ler os mesmos relatos entre os tripulantes de Shackleton, que não era santo nem religioso, embora trouxesse consigo os valores de uma formação anglicana.
Em meio à fome e ao caos, os marinheiros escreviam sobre... poesia.
Relatos sobre conversas e tardes agradáveis com os companheiros não são escassos. Tocavam música, conversavam sobre literatura, jogavam cartas...
Não foram poupados do sofrimento em nenhum momento, mas a felicidade nunca os deixou.
Como é possível?
A rotina. O dia a dia imposto mesmo quando a mente não via saída.
Tanto o padre quanto Shackleton impunham, com rigor, mesmo naquelas situações lúgubres, a necessidade de levantar cedo, organizar tarefas, distribuir responsabilidades, promover as escassas refeições em grupo — uma espécie de ordem artificial em meio ao caos do nada.
A leitura de livros era constante. Shackleton fez questão de levar um banjo pesado na expedição, sabendo que a música seria essencial para manter a alma viva.
Josemaria incentivava que não perdessem o ‘tesouro’ do tempo, e evitassem as divagações da imaginação angustiada. Tinham até horário de estudos, que incluía o aprendizado de línguas para possíveis projetos futuros.
Quão resiliente uma alma precisa ser para se dedicar a estudar um idioma — algo que exige tempo — sem saber se estará viva amanhã?
A tendência natural diante de uma tragédia, de uma frustração imensa, de um problema que parece esmagar tudo, é que o primeiro ponto a se quebrar seja justamente o cotidiano — a ordem dos dias.
Você se deprime. Pequenas coisas tornam-se descaradamente irrelevantes. Do que vale o pequeno diante da destruição do maior? Quando se trata de sobrevivência: tudo.
É quando o caos impera, quando o mundo exterior colapsa e ameaça, quando não se tem mais esperança, que devemos focar nas pequenas coisas. A rotina não é a ordem externa de tarefas necessárias para a manutenção do dia a dia, mas a barreira que impede que o caos tome conta da nossa mente quando todo o resto colapsa.
Quando alguém adoece mentalmente, a primeira coisa que se rompe é o eixo controle–cotidiano. Vemos casas bagunçadas, louças sujas, abandono de atividades básicas — leitura e estudo, então, nem se fala.

Manter uma rotina quando o mundo colapsa não é para fingir que tudo está bem, mas para evitar que o caos devore por dentro.
É isso que a rotina é, em tempos de guerra interior:
um frágil fio de ouro entre você e o abismo. É o fio que tirou Teseu do labirinto do Minotauro e o trouxe de volta à civilização.
E veja, não se trata de entrar em um mundo de rigidez, tornando-se escravo do tempo. Quando digo rotina, estou longe de me referir a um plano cronometrado de ações diárias tiradas de algum influencer de lifestyle ou de um livro de autoajuda.
Shackleton iniciou sua jornada com um objetivo: realizar a primeira travessia terrestre da Antártida, de um lado do continente ao outro, passando pelo Polo Sul. Quando viu todo o seu dinheiro, sonhos, esperança e planos irem para o fundo do oceano, alterou a rota. Seu objetivo se tornou levar todos os seus homens para casa.
São Josemaria continuou sua missão de vida, mesmo limitado pelas paredes escuras do porão e pelas ameaças de morte. Não sabia se sairia ou não vivo dali, mas carregava a certeza do motivo pelo qual veio ao mundo — e estava disposto a honrá-lo até o fim de sua vida.
Ambos criaram e viveram suas rotinas baseadas em seus principais objetivos. Moldaram-nas quando necessário, mas tinham uma ideia muito clara de para onde estavam indo.
Não largue o fio.
Mantenha a rotina, principalmente quando não fizer sentido.
Ela vai te levar de volta pra casa.
De volta pra ordem.
Ficamos hoje por aqui, até terça que vem, as 20h. Foi um prazer estar em sua companhia.
Olá, quando terá o artigo com o conselho 4?
Não consigo explicar em palacras o quanto esse texto fez eu ter uma uma mudança de pespectiva de como devemos lidar com a vida