Você subestima demais sua vida comum.
Pelo que lutamos: os hobbits, Palestina x Israel e por que isso deveria importar pra você.
"Hoje a Rússia declarou guerra à Alemanha. De tarde fui nadar."
A frase foi escrita por Franz Kafka em seu diário, em meio à deflagração de um dos maiores conflitos da história moderna. Em meio ao colapso dos impérios, Kafka foi nadar.
Alienado? Egoísta?
Não. Apenas real.
Nada diferente de nós, brasileiros, que — quando Trump declarou guerra ao Irã na madrugada de uma segunda-feira — estávamos ocupados com nossas quadrilhas e festas juninas.
Acontece que, mesmo sem saber, estivemos o tempo todo defendendo aquilo que realmente está em jogo: a possibilidade de viver uma vida comum.
Porque, ao contrário do que se costuma dizer, uma guerra não se trava por ideologias.
Não realmente.
Os discursos ideológicos podem justificar, encobrir, inflamar.
Mas, quando observamos de perto os olhos de quem luta — ou de quem tenta sobreviver — percebemos que o que se defende, o que se quer de volta, são as pequenas coisas.
É a possibilidade de viver um bom cotidiano.
Honrar as tradições familiares e étnicas.
Ver os filhos e netos crescendo.
Trabalhar. Ir dormir tranquilo.
As cartas de soldados, os relatos de prisioneiros, os testemunhos de refugiados têm sempre a mesma saudade:
da casa da infância, do pão da mãe, da luz da tarde numa rua qualquer.
A primavera.

Viktor Frankl, nos campos de concentração, contava que, entre seus companheiros de prisão, muitos sonhavam com os jantares que ofereceriam uns aos outros quando aquilo tudo acabasse.
Não havia, naquelas fantasias, a reconstrução de impérios.
Havia sopa quente.
Um lar.
Um riso compartilhado.
Foi também de dentro da guerra que J.R.R. Tolkien começou a sonhar com a Terra Média.
Jovem soldado inglês na Primeira Guerra Mundial, Tolkien viu seus amigos morrerem nas trincheiras da Batalha do Somme, uma das mais sangrentas da história.
Saiu de lá fisicamente doente, emocionalmente exausto —
"Um por um, os melhores se foram. E eu entrei em um mundo onde apenas a sombra deles caminhava."
— Tolkien, em carta sobre seus amigos do grupo literário T.C.B.S. que morreram na guerra
O que ele criou a partir desse cenário não foi um conto de vingança.
Nem de glória.
O Senhor dos Anéis é uma história épica, sim, mas centrada numa figura que foge completamente ao padrão do herói clássico: o hobbit.
Os hobbits são pequenos, caseiros, pacíficos.
Gostam de bolos, de cachimbos, de jardins, de genealogias familiares.
Não desejam glória nem poder.
Representam aquilo que há de mais terrestre, mais enraizado e mais essencial:
a capacidade de viver bem o cotidiano.
Eles são, no fundo, o símbolo do humano comum —
não no sentido pejorativo,
mas como aquilo que verdadeiramente sustenta o mundo.
E é justamente por isso que são eles — e não os guerreiros, magos ou reis — que podem carregar o fardo mais terrível.
O mal, para Tolkien, não se vence com força, mas com simplicidade.
E só quem não deseja o poder pode resistir à sua sedução.

Gandalf diz:
"Saruman acredita que apenas um grande poder pode manter o mal sob controle, mas não é o que eu descobri. Descobri que são as pequenas coisas, os atos cotidianos de pessoas comuns, que mantêm o mal afastado. Simples atos de bondade e amor."
Essa ideia não vem apenas de uma imaginação fértil,
mas do contato direto com a guerra:
"A guerra me ensinou o que é o mal real: o desprezo pelo pequeno, pelo natural, pelo simples."
É baseado nessa vivência que ele se inspira nos hobbits.
É isso que faz de Frodo e Sam os verdadeiros heróis.
Eles não querem salvar o mundo — querem voltar pra casa.
Para Tolkien, seu “herói” era, de fato, Sam Gamgee.
O personagem foi inspirado na bravura dos soldados comuns, não nos oficiais.
Eles não são movidos pela glória — são movidos por ter um lugar para qual voltar.
Há uma cena especialmente bela, quando Sam está à beira do colapso, exausto, faminto, cercado por trevas.
E o que o sustenta é a lembrança de Rosinha:
ele sonha com o dia em que, de volta ao lar, a levará para dançar no Salão do Pônei Saltitante.
Ele não pensa em medalhas.
Nem em reconstruções.
Pensa numa dança.
Numa moça.
Num salão iluminado.

Sam está carregando o mundo — não por dever, mas por amor a ele.
Essa é a revolução simbólica que Tolkien propõe.
Ao colocar o destino do mundo nas mãos de dois pequenos camponeses,
ele inverte toda a lógica épica.
Diz, com todas as letras,
que os verdadeiros salvadores são aqueles que amam o que é simples —
e que, por isso, estão dispostos a sacrificar tudo para preservá-lo.
Quando olhamos para os conflitos atuais — como a guerra entre Israel e Palestina —
é difícil não sentir impotência.
A dor é imensa.
E a polarização, muitas vezes, impede que enxerguemos o essencial:
que, em ambos os lados, há gente que só queria levar os filhos à escola sem medo,
fazer o jantar, guardar uma herança para os netos.
São esses fragmentos de vida que estão sendo destruídos.
São eles que deveríamos proteger.
E você, que talvez leia isso longe das bombas e dos campos de batalha, também está em risco.
Porque há uma guerra silenciosa contra o comum.
Contra a delicadeza.
Contra a paz da rotina.
E essa guerra, às vezes, entra pela tela do celular,
disfarçada de pressa, de performance, de comparação.
Vivemos hoje num mundo em que o brasileiro comum — exausto, empobrecido, inseguro —é também constantemente bombardeado por imagens de luxo, escândalo, ostentação.

Influenciadores vendem fórmulas para uma vida perfeita que, no fundo,
nos afastam da única vida real que podemos de fato viver: a nossa.
Há quem acorde todos os dias odiando a própria rotina,
sem perceber que ela — com suas tarefas simples,
seus pequenos gestos de cuidado, suas refeições improvisadas —
é precisamente a vida que merece ser salva.
Quando Jordan Peterson diz que, antes de tentar consertar o mundo, você deve arrumar sua cama,
ele não está diminuindo a ação.
Ele está apontando para o centro dela.
Porque não existe mundo possível sem a vida comum dos que vivem nele.
Não há mundo que valha a pena ser salvo sem que você tenha uma cama sua para arrumar.
Salvar o mundo é salvar o cotidiano.
A maior parte da vida é feita de repetições.
Mas é nelas que o sentido se instala.
É nelas que o mal é contido —com a força paciente de quem ama o que é simples.
Kafka nadou.
Bilbo voltou para o Condado.
Sam sonhou com Rosinha.
E você?
Está defendendo o quê?
O principal sintoma de que algo não vai bem é quando se tenta fugir do cotidiano.
Quando se odeia o trabalho. Quando se espera a sexta-feira para se alcoolizar
e perder qualquer senso de existência até domingo —
onde, muito tristemente, se deita para trabalhar no dia seguinte.
O cotidiano foi pintado como algo tedioso, melancólico.
A rotina, como algo vil, opressor.
O que passa a valer são as grandes ideologias,
as grandes personalidades, as grandes conquistas —
que, no fim, nunca são nossas.
Se alegra pela vitória no futebol, mas se deprime diante da própria vida.
Se defende a vida de um político com garras e dentes, mas se mata aos poucos.
Se fala das filhas dos influenciadores como se fossem parentes,
e ignora — ou despreza — as crianças reais ao redor.
No fim, o único tesouro que você tem é vendido por um dinheiro cuja quantia e localização você desconhece.
No fim, o cotidiano é tudo o que temos, não o subestime.
Ficamos hoje por aqui, até terça que vem, as 20h. Foi um prazer estar em sua companhia.
"Ele ainda tem um papel a desempenhar, seja bom ou ruim e não cabe a nós decidir se ele merece ou não a morte. O destino de muitos - e o seu não menos - será governado pela decisão de muito tempo atrás, quando Bilbo, podendo matar seu inimigo, sentiu pena e o deixou viver." - Gandalf (Parafraseado)
Engraçado como a salvação da Terra Média nasceu de um ser pequeno, visto como frágil, que entendeu que a melhor solução não envolvia o assassinato.
Seu texto me fez chorar as dez da manhã